Tratamento

28/10/2011 – Atualizado em 31/10/2022 – 9:04am

Cobras são assustadoras e, para algumas pessoas, asquerosas. Sem contar que podem matar grandes mamíferos — inclusive, o homem — em poucos minutos. Uma coisa, entretanto, não se pode negar: elas têm um coração enorme. Pelo menos, depois de uma boa refeição. Após um ano sem comer, as pítons devoram o que veem pela frente, e seus órgãos dobram de tamanho. As quantidades de gordura e insulina circulantes no sangue seriam fatais para qualquer criatura, menos para elas. Por isso, esses temidos répteis têm potencial para ajudar seres humanos que sofrem de doenças cardiovasculares.

Um artigo publicado na edição de hoje da revista Science sugere que novas drogas poderão ser desenvolvidas baseadas na fisiologia das pítons, cobras que vivem em florestas africanas e asiáticas e chegam a pesar mais de 100kg. Apesar de estocar ácidos graxos em taxas altíssimas, elas têm uma capacidade surpreendente de queimar gorduras em questão de dias. Desde 2006, a bióloga Cecilia Riquelme, da Universidade do Colorado, câmpus de Bolder, estuda o comportamento orgânico das pítons. Destemida, ela chega a dividir seu laboratório com mais de 50 espécimes. Um risco que, garante, vale a pena. “Acredito que estudos como o nosso poderão, de fato, dar origem a novos tratamentos para doenças cardiovasculares em geral”, diz, em entrevista ao Correio (leia Três perguntas para).

Assim como os ursos pardos na vida selvagem, as pítons passam um longo tempo hibernando. Geralmente, ficam de seis a nove meses dormindo, mas são capazes de sobreviver até um ano sem comida. Antes do sono duradouro, porém, elas estocam gordura suficiente para fazer com que não só a aparência, mas os órgãos internos, pesem o dobro do normal. De acordo com o biólogo evolutivo Jared Diamond, um dos pioneiros nos estudos desse réptil, uma píton adulta consegue ingerir animais uma e vez e meia mais pesados do que ela — é como se uma pessoa com 60kg devorasse, de uma só vez, um sanduíche de 90kg.

Em um artigo publicado em 1998 na revista Nature, Diamond descreveu que, depois de engolir sua presa, a píton se enrola e fica praticamente imóvel, exceto pelo movimento da respiração. Assim permanece por cinco a 11 dias, tempo necessário para digerir o banquete. Nesse período, o número de enzimas digestivas aumenta seis vezes, o metabolismo fica 40 vezes mais acelerado e grandes quantidades de insulina e outros hormônios são sintetizados. O intestino dobra de tamanho, produzindo uma superfície extra, necessária para absorver tantos nutrientes em tão pouco tempo. Os rins também ficam maiores por causa dos resíduos metabólicos.

Digestão
O preço da fartura é alto. A hibernação ocorre porque o alimento não se converte imediatamente em energia. Todo o esforço para dobrar de tamanho exige grandes quantidades de calorias queimadas — a píton, então, precisa gastar seu próprio estoque, antes de aproveitar a nova refeição. No artigo, Diamond faz uma comparação com os postos de gasolina dos Estados Unidos, que só começam a funcionar depois de o dinheiro ser depositado: “Você paga antes do bombeamento”, brincou. Para digerir uma quantidade enorme de comida, as cobras gastam 32% de seus recursos energéticos. Em humanos, essa taxa não chega a 10%.

Depois da digestão, uma amostra de sangue das pítons mostra o resultado da gula. Níveis muito altos de lipídios, gorduras importantes para garantir o fornecimento de energia, mas que, em excesso, provocam diversos problemas cardiovasculares, acumulam-se na corrente sanguínea. Mesmo com triglicérides disparados, no entanto, a cobra não sofre qualquer problema. Pelo contrário, o coração continua límpido, sem sinal de placas gordurosas, como ocorre em humanos. O que mais impressionou a equipe de Riquelme é que, além de não ficar danificado, o órgão tornou-se ainda mais saudável, pois houve aumento de atividade de uma enzima responsável por proteger o coração de danos.

Os cientistas, então, analisaram o plasma das pítons para descobrir quais substâncias químicas estão envolvidas no processo. Eles reproduziram, in vitro, a composição sanguínea, que consiste em uma mistura de ácidos graxos. Cobras em jejum receberam uma dose injetável do composto, tanto do retirado daquelas já alimentadas quanto do fabricado artificialmente. Em todos os casos, o coração aumentou, sem danos à saúde. A experiência foi repetida em ratos, com o mesmo resultado.

Segundo a geneticista Leslie Leinwand, que também assina o trabalho, o aumento do coração pode ser bom ou ruim, dependendo da situação. Especialista em doenças cardíacas de origem genética, como cardiomiopatia hipertrófica, problema caracterizado pelo afinamento dos músculos do órgão e por seu crescimento anormal, essa é uma condição que poderia ser beneficiada por uma nova terapia. Ela afirma que atletas profissionais têm corações maiores que a média da população, graças aos exercícios pesados que fazem. Nem todas as pessoas — em especial, cardíacos —, porém, podem se beneficiar da técnica. “Por isso, seria muito importante desenvolver algum tipo de tratamento que promova o crescimento benéfico das células cardíacas”, justifica. Para que os estudos clínicos sejam possíveis, Lainwand diz que é preciso, antes, entender como as células são ativadas para beneficiar, e não danificar, o coração.

Nem sempre ruim
Os ácidos graxos são gorduras, que podem ser “boas” ou “ruins”. Ao contrário do que se pensa, nem toda gordura é prejudicial à saúde, já que o organismo precisa delas para transformá-las em energia. Há diversos tipos de ácido graxo — os insaturados são os mais saudáveis.