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19/05/2011 – Atualizado em 31/10/2022 – 9:10am

Três estudos publicados na revista especializada Science Translational Medicine mostram como cientistas conseguiram, em caráter experimental, "reeducar" determinado tipo de células para que elas não rejeitassem partes do corpo transplantadas

Transplantes de órgãos e células salvam milhares de vidas todos os anos. Médicos e pacientes, entretanto, têm de lidar com uma dificuldade que pode comprometer os esforços da cirurgia: a rejeição pelo próprio organismo. Granulócitos, monócitos, macrófagos e linfócitos, “soldados” do sistema imunológico que lutam contra invasores, muitas vezes enxergam o material transplantado como inimigo. A saída pode estar na reeducação das células regulatórias (Tregs), cuja função natural é prevenir as doenças autoimunes, como diabetes e lúpus, caracterizadas pela falha do organismo em reconhecer estruturas que ele mesmo produz.

A edição de ontem da revista especializada Science Translational Medicine trouxe novas perspectivas no combate à rejeição. Três artigos descrevem estratégias bem-sucedidas que, embora ainda experimentais, conseguiram evitar que o organismo expulsasse os órgãos ou tecidos transplantados. Atualmente, para que isso não aconteça, os pacientes tomam medicamentos chamados imunossupressores, mas essas substâncias também afetam a parte saudável do sistema imunológico. Com isso, deixam o organismo aberto a diversos tipos de infecções.

O papel das Tregs no combate à rejeição tem sido investigado há muito tempo. Dentro do campo de batalha do sistema imunológico, porém, elas são poucas. A quantidade é insuficiente para funcionarem como imunossupressoras naturais. O que as pesquisas descritas na revista médica da Science fizeram foi coletar as Tregs do organismo, separá-las e cultivá-las in vitro, de forma a aumentar o número das células regulatórias. Reinseridas no organismo em maior número, elas poderiam funcionar como poderosas armas no combate à rejeição.

“As células T regulatórias são células imunológicas, cuja função é evitar que o sistema confunda estruturas próprias com externas”, disse ao Correio Keli Hippen, principal autora de um dos artigos publicados na revista. “Essa situação é muito similar à dos transplantes, onde, apesar das vigorosas tentativas de combinar as células do doador e do receptor, as diferenças ainda existem e podem levar à doença do enxerto contra o hospedeiro, uma condição na qual as células imunlógicas presentes no tecido do doador são reconhecidas pelo receptor como invasoras e, então, destruídas”, explica. “O objetivo de adicionar as Tregs no organismo no momento do transplante é fornecer uma estratégia para que as células recipientes aprendam que os tecidos transplantados não são mais intrusos.”

Promessas e riscos
Na pesquisa conduzida por Hippen, cientista da Divisão de Transplante de Medula Óssea do Departamento de Pediatria da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, os cientistas concentraram-se no transplante de células hematopoiéticas que abrangem a medula óssea, as células do cordão umbilical e do sangue periférico. Esse tipo de célula tem uma grande capacidade de se autorrenovar, além de ser pluripotente, ou seja, pode se transformar em diversas outras linhagens. Na medula óssea, elas dão origem às células mieloides e linfoides, e muitos estudos já mostraram seu papel no combate a alguns tipos de câncer, como a leucemia.

Apesar de extremamente promissor, o transplante das células hematopoiéticas também apresenta riscos enormes ao paciente. De acordo com o Grupo Europeu de Transplante da Medula Óssea, mesmo quando há compatibilidade entre doador e receptor, o índice de mortalidade é de 10% — isso sem considerar as taxas de rejeição e as doenças que podem aparecer em decorrência do transplante.

Na pesquisa de Hippen, os cientistas conseguiram evitar esses problemas injetando as Tregs humanas em ratos com imunodeficiência. As células foram coletadas do sangue e, in vitro, se multiplicaram. Depois, os pesquisadores injetaram o material nos roedores. “O maior benefício clínico da nossa descoberta é que as Tregs podem se expandir em um grau que nos permitirá a criação de ‘bancos de células reguladoras’. Similar aos bancos de cordão umbilical, isso tornará a terapia com Tregs substancialmente disponível. Essas células podem ser usadas para prevenir ou tratar a doença do enxerto contra hospedeiro, a rejeição ao transplante e as doenças autoimunes”, acredita.

Em outro artigo publicado na Science Translational Medicine, pesquisadores do King’s College de Londres desenvolveram um método de seleção das Tregs que regulam apenas a atividade das células envolvidas no órgão transplantado. Assim, as demais trabalham normalmente, ao contrário do que ocorre com os atuais medicamentos imunossupressores. Diferentemente do trabalho da Universidade de Minnesota, concentrado em transplante de células do sangue, o estudo se concentrou nos órgãos sólidos, que podem ser rejeitados pela pele. Ratos com sistema imunológico deficiente receberam tecidos humanos e doses das Tregs específicas, que são mais potentes do que as demais células T reguladoras. O resultado foi que a pele dos animais não rejeitou o transplante.

“Se a abordagem puder ser adotada para o tratamento de pacientes humanos, poderemos retirar uma amostra de sangue desa pessoa, separar as Tregs específicas, misturá-las ao órgão do doador e implantá-las no receptor”, conta ao Correio Giovanna Lombardi, uma das autoras do estudo e pesquisadora do Instituto de Dermatologia St. John, do King´s College London. “Depois do transplante, as mesmas células podem ser inseridas no receptor. Acreditamos que a abordagem terapêutica poderá ser aplicada para a maioria de transplantes de órgãos sólidos, como rins, coração e fígado.”

O terceiro estudo publicado na Science Translational Medicine utilizou o mesmo princípio, mas foram aplicados outros materiais no cultivo das células Tregs. “Um dos efeitos colaterais mais sérios da terapia com Tregs é a inibição da imunidade contra o aparecimento de tumores e difusão de vírus. À medida que as técnicas de cultura dessas células emergem, esperamos que nos próximos anos a terapia seja aprimorada para ser utilizada como tratamento para doenças autoimunes, alergias, doença do enxerto contra o hospedeiro e tolerância a transplantes de órgãos sólidos”, observaram, em um artigo escrito para a Science, os pesquisadores Xuehao Wang, Ling Lu e Shuiping, do Hospital Universitário Jiang, na China. “Os novos dados apresentados nessa edição da revista fornecem uma plataforma para a aplicação clínica e individualizada da terapia com Tregs