Genética
19/01/2011 – Atualizado em 31/10/2022 – 9:24am
O cientista americano Michael Hecht dá um suspiro satisfeito quando a reportagem pede que ele compare sua pesquisa, que resultou nos primeiros genes fabricados em laboratório, com a de Craig Venter, o criador da primeira bactéria sintética. “Fico feliz que tenha perguntado”, diz, antes de começar a explicação. “Podemos usar a criação da imprensa como analogia. O invento de Gutenberg foi um grande avanço tecnológico. Mas o primeiro livro a ser impresso foi a Bíblia. A impressão era algo inovador, mas a informação contida nela já circulava por séculos. Esse é o experimento de Venter: ele criou o método para reproduzir um DNA inteiro sinteticamente, mas o copiou de uma bactéria cujos genes já existiam. No nosso experimento, não estamos copiando a Bíblia, ou Shakespeare. Se cada forma de vida fosse um livro, estaríamos escrevendo frases e versos de um novo livro”.
Com essa metáfora, Hecht ilustra como ele e sua equipe da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, entendem sua mais recente descoberta. Tendo como base a imaginação, a equipe de Hecht escreveu trechos genéticos inteiramente novos e os inseriu em bactérias com sucesso, substituindo genes vitais. As bactérias do experimento não só sobreviveram, como formaram colônia e passaram a produzir proteínas não encontradas na natureza. A descoberta pode ser um passo decisivo em direção à vida artificial.
O primeiro – e provavelmente mais importante – desses passos foi dado no ano passado quando o geneticista Craig Venter balançou o mundo científico com um experimento inédito na biologia sintética. Venter havia codificado e recriado em laboratório o DNA completo de uma bactéria e o inserido em uma segunda bactéria, que adquiriu as características da primeira. Mas, como bem observou Hecht, a nova bactéria não era uma vida inteiramente artificial e sim um cópia artificial de uma forma de vida conhecida. Os primeiros genes completamente sintéticos do mundo são estes desenvolvidos pelos cientistas de Princeton.
“A pesquisa de Hecht segue a mesma linha dos estudos de Venter, usando uma estratégia complementar. É um estudo sério e mais um passo em direção à criação da vida artificial”, atesta Mayana Zatz, uma das maiores geneticistas do Brasil e colunista do site de VEJA.
O custo do experimento foi surpreendentemente baixo. “Enquanto Venter investiu 40 milhões de dólares em seu projeto, o nosso custou menos de 1% dessa soma. Ele foi tocado por seis estudantes universitários e um pós-graduando”, conta Hecht, que é líder do estudo e tutor de estudantes em Princeton.
Curas inéditas – Agora faça o exercício de voltar à pré-escola e imagine que você tem 20 tipos de bloquinhos que podem ser combinados de todas as maneiras que sua imaginação conceber. Quantas combinações são possíveis? Infinitas. Substitua esses bloquinhos por aminoácidos e pense que esses ácidos são pecinhas que, quando combinadas, podem formar incontáveis proteínas. A mudança no formato de uma estrutura com as mesmas ‘peças’ também muda o tipo da proteína. Até hoje, esse “lego de aminoácidos” era uma brincadeira exclusiva da Natureza. Não é mais. A descoberta de Hecht permite que cientistas inventem proteínas em laboratório.
A técnica pode levar a avanços antes inimagináveis que terão impacto direto na vida das pessoas. “Poderíamos usar bactérias modificadas para coisas úteis como biorremediação, por exemplo, com micro-organismos que se alimentam do petróleo que contaminou oceanos, ou usar proteínas artificiais como remédios para doenças hoje sem cura”, diz Mayana.
Para entender a importância da pesquisa é preciso ter em mente a relação entre genes e proteínas. Cada grupo de genes é o responsável pela produção de uma determinada proteína. Espécies diferentes produzem proteínas distintas e as proteínas criadas variam entre indivíduos também. Ou seja: os genes funcionam como ‘máquinas’ que fabricam proteínas que podem mudar o funcionamento do organismo de um indivíduo. E com a liberdade de criar e inserir novas ‘máquinas genéticas’ no DNA de bactérias, agora os cientistas já são capazes de inventar proteínas antes desconhecidas, para os mais distintos usos.
“Na maioria dos casos, hoje, a biotecnologia lida com proteínas que já existem na natureza para tratar doenças. Insulina, ou o hormônio de crescimento, por exemplo, são substâncias já conhecidas que são postas em seringas e dadas aos pacientes”, diz Hecht. “No futuro, a biotecnologia usará proteínas que não são retiradas da natureza, mas sintetizadas em laboratório, completamente novas, vindas das mentes dos pesquisadores”, complementa.
As responsabilidades, naturalmente, crescem com o conhecimento. Mayana alerta para o perigo de que essas experiências também pudessem produzir superbactérias e superdoenças que saíssem do controle. "Será preciso discutir e criar normas para o bom uso dessa técnica."