Pesquisa

21/06/2012 – Atualizado em 31/10/2022 – 8:48am

Com clima e ambiente hostis, o Deserto do Saara não parece o local mais apropriado para a criação de gado, já que os animais precisam de quantidades elevadas de água e pasto para sobrevivência. No entanto, durante o período úmido do Holoceno africano – iniciado 10 mil anos atrás -, a mesma região desfrutou de condições muito mais favoráveis. Evidências de fauna encontradas por cientistas já tinham mostrado que bois, ovelhas e cabras viviam próximo a antigas savanas localizadas na hoje árida região. Agora, um estudo publicado na revista Nature mostra que a população pré-histórica do Saara africano teria desenvolvido uma intensa produção leiteira 7 mil anos atrás.

A descoberta foi feita a partir da análise de resíduos de alimentos depositados em 81 pedaços de cerâmicas escavadas na região (veja quadro). A equipe dos pesquisadores Julie Dunne e Richard Evershed, do Instituto de Química da Universidade de Bristol, no Reino Unido, já tinha conseguido datar o início da produção leiteira na Europa e na Ásia. A mesma técnica – de identificação de isótopos da gordura do leite em materiais escavados – foi aplicada para reunir evidências químicas do processamento de produtos lácteos em vasos de cerâmica no Saara da Líbia.

Os cientistas alcançaram resultados em que o aparecimento da gordura do leite na cerâmica está correlacionado à presença mais abundante de ossos de gado nos depósitos das cavernas. Isso sugere uma economia pastoral completa, com os bovinos intensamente explorados por seus produtos secundários. Alguns valores químicos encontrados nesses cacos de cerâmica são inéditos e apontam para diferentes modos pastorais de subsistência, como a transumância vertical – grandes deslocamentos populacionais realizados de forma vertical, ou seja, de terras mais altas, como montanhas, para terras mais baixas, como os litorais. O modelo de assentamento foi provavelmente desenvolvido em resposta a padrões climáticos sazonais e estava baseado em temporadas de verão nos mares de areia da planície e períodos de inverno nas montanhas.

Pinturas

As evidências mais antigas de produção leiteira datam de aproximadamente 9 mil anos atrás, no noroeste da Anatólia – região que corresponde hoje à porção asiática da Turquia. A prática também foi registrada há 8 mil anos no leste da Europa, e na Grã-Bretanha, dois milênios mais tarde. Atualmente, a comunidade científica aceita que a domesticação de animais chegou muito antes do cultivo das plantas no norte africano.

A importância dos rebanhos na vida desses antigos habitantes do Saara está refletida nas pinturas rupestres que mostram inúmeras cenas de gado e até de ordenha. Porém, antes dessa pesquisa, ainda era muito difícil confirmar a prática da produção leiteira na população africana, já que a datação do material encontrado nas cavernas não é confiável o suficiente para evidenciar a utilização e o consumo de laticínios. "As pinturas rupestres e gravuras do Saara também demonstram claramente que o gado desempenhou um papel significativo na vida e na ideologia de antigos grupos humanos que viveram nessa região durante o Holoceno. No entanto, não havia provas conclusivas para garantir que essas pessoas tinham adotado práticas de produção leiteira. Por isso esse estudo é tão importante", detalha Julie Dunne, para quem a pesquisa deverá atrair não só a atenção de arqueólogos, mas de cientistas veterinários e geneticistas.

Os cientistas tiveram a confirmação de que o leite foi uma parte importante da dieta dessas antigas populações e, para os próximos passos da pesquisa, Dunne quer buscar outros locais dentro da região norte da África para construir uma linha do tempo da adoção de práticas de produção leiteira por pré-históricos saarianos.

Formação social

Para a coordenadora do curso de pós-graduação em arqueologia do Centro de Ciências da Natureza da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Jacionira Coêlho Silva, o excepcional da região pesquisada é que hoje ela se apresenta como um deserto, já que no Crescente Fértil a pecuária era praticada no mesmo período que no Saara. "De certo modo, a notícia da habitabilidade da área já vinha aparecendo desde que geólogos e geomorfólogos anunciaram um processo de desertificação recente no Saara, em torno de 3 mil ou 4 mil anos atrás."

O professor titular de química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) José Domingos Fabris considera que as evidências dão as pistas fundamentais para a construção de modelos da formação evolucionária do ser humano moderno e da sociedade atual. "Os hábitos de grupos humanos primitivos, evidenciados pela dieta, pelas manifestações artísticas e pelo fluxo das migrações são inferidos a partir de testemunhos arqueológicos. Os resultados elevam ainda a importância de métodos arqueométricos para assegurar inferências seguras sobre eventos pré-históricos", observa o especialista. Ele também acredita que o método utilizado é bastante confiável, na medida em que a composição química dos resíduos orgânicos separados dos fragmentos das cerâmicas pré-históricas é uma característica de produto de origem animal, como leite. "Os dados espectrométricos são verificados por rigorosos padrões químicos, que permitem aferir a precisão analítica e a confiabilidade", conclui.

Berço da civilização

O Crescente Fértil é uma região que compreende os territórios de Israel, da Cisjordânia e do Líbano, bem como partes da Jordânia, da Síria, do Iraque, do Egito, da Turquia e do Irã. A região é irrigada pelos rios Jordão, Eufrates, Tigre e Nilo. Ali, nasceram os primeiros assentamentos agrários conhecidos, há 11 mil anos, localizados em Iraq ed-Dubb (Jordânia) e Tell Aswad (Síria), seguidos de perto por Jericó (Palestina). As mais antigas cidades de que se tem notícia apareceram posteriormente na Mesopotâmia. Essas descobertas permitiram apelidar a região de "berço da civilização".

Palavra de especialista

Novas peças de um quebra-cabeça

"A pesquisa significa um avanço muito importante, sobretudo para a área de conservação da arqueologia, porque envolve a investigação de material orgânico, cuja preservação é muito mais difícil. Dependendo do ambiente em que o objeto de interesse está imerso, há diversos fatores degradantes que atuam simultaneamente. A purificação dessas amostras é uma etapa complexa, e a quantidade de material – frequentemente muito reduzida – torna essa etapa da análise ainda mais melindrosa. Concebo que esses novos dados configuram uma parte importante do quebra-cabeças que, eventualmente, explica o modo de vida, a tecnologia e outros aspectos desses grupos humanos africanos. Estou convicto de que várias outras peças desse mesmo quebra-cabeça continuam lá e nós ainda não conseguimos enxergar, detectar, medir. Esse é um longo caminho que devemos percorrer e que depende do avanço tecnológico."

"As notícias desta seção são informações de interesse da Medicina Veterinária e Zootecnia que foram divulgadas na mídia. O CFMV não se responsabiliza pelas publicações."