Inteligência

10/01/2012 – Atualizado em 31/10/2022 – 9:01am

Comparar a inteligência de cachorros com a das pessoas pode soar bastante ofensivo, mas foi justamente o que fizeram pesquisadores húngaros. E a conclusão é surpreendente. Segundo eles, o melhor amigo do homem tem capacidade comunicativo-social equivalente à de crianças entre 6 meses e 2 anos. Isso significa que os cães, embora não compreendam a linguagem verbal — assim como os pequenos, no começo da infância — assimilam, por gestos e olhares, o que as pessoas desejam expressar.

Para realizar a pesquisa, publicada na mais recente edição da revista científica Current Biology, os cientistas liderados pelo psicólogo József Topál, do Instituto de Pesquisas Psicológicas da Academia de Ciências Húngara, analisaram a reação de 29 cachorros a dois vídeos em que uma pessoa os cumprimentava e depois se virava para um dos dois objetos que também eram focalizados pela câmera. No primeiro, uma mulher olhava diretamente para a câmera (dando a impressão de olhar para o animal) e o saudava de maneira alegre, como se cumprimentasse uma criança. No outro, ela apenas dizia “olá, cachorro” em voz baixa e evitava contato visual. Todas as cobaias olharam por longo tempo (cerca de 2 segundos) para a direção apontada pela mulher no primeiro vídeo, mas apenas passaram os olhos no objeto indicado por ela na segunda gravação, sem ter a intenção de observá-lo realmente.
Em entrevista ao Correio, Topál afirma que o experimento reforça a conclusão de pesquisas anteriores sobre a sensibilidade dos cachorros ao comportamento comunicativo humano. “Os cães são sensíveis a estímulos que sinalizam a intenção de o indivíduo interagir. A eficiência dessa ligação entre ambos certamente pode ser melhorada ser for baseada em um sistema de treinamento”, garante. “No estudo, percebemos que esses bichos, em uma situação de seguir o olhar do indivíduo, apresentaram um padrão visual similar ao de bebês com 6 meses. Isso significa que, embora geralmente prefiram fixar a vista em objetos específicos, esse viés não se reflete em seus primeiros olhares”, explica. Além dessa característica, o estudo sugere que a atenção dos cães e sua capacidade de entender gestos que indicam alguma direção são similares às de crianças com pouco menos de 2 anos.

Sem vergonha
Segundo a médica veterinária Christine Martins, do Hospital Veterinário da Universidade de Brasília (UnB), já é senso comum que os cães, quando treinados, respondem a estímulos verbais. “Mas normalmente isso é feito mediante reforço positivo, ou seja, se você fala ‘senta’ e mostra para o animal o que você quer que ele faça e lhe dá um agrado, como comida ou carinho, facilmente ele vai reagir àquela palavra da maneira desejada na vez seguinte”, comenta. Ela ressalta que a conclusão do estudo de Topál é que os cachorros entendem não as palavras que os humanos falam, mas a intenção delas. “Qualquer proprietário sabe que ao se comunicar com um cão, assim como com um bebê que ainda não fala, o segredo está no tom de voz e não especificamente no que se diz”, completa.

Para Christine, é interessante o fato de a pesquisa destacar a capacidade dos cachorros de se fixarem nos olhos de seu dono ou instrutor e, assim, entender intenções a ações distintas do indivíduo. “Isso é relevante porque nós, humanos, valorizamos muito o olhar, percebemos nele os sentimentos de quem conhecemos bem”, afirma. A veterinária acredita que o maior mérito do estudo é destacar a necessidade de as pessoas interagirem mais com seus cães e não terem vergonha de conversar com eles, pois, embora não entendam o que os indivíduos falam, compreendem os sentimentos por trás das palavras.

A ligação do veterinário e criador de cachorros Paulo Chianca, 44 anos, com seus nove cães é muito forte, e a comunicação, bem estabelecida. Ele destaca que, para que a compreensão entre dono e cachorro seja possível, ambos precisam ter relação próxima, baseada na confiança, no respeito e no afeto. “É importante estabelecer uma linguagem comum a ambos, desenvolvida com paciência, recompensa e repetições”, complementa. Chianca assegura que seus cães olham diretamente em seus olhos, de modo a entender corretamente a mensagem a ser passada. “E é incrível como eles conseguem, assim, compreender minhas necessidades, meu comportamento, se estou alegre ou triste, se aprovo ou não alguma atitude deles”, cita.

Apaixonado pelos animais, Chianca crê que a pesquisa húngara traz luz ao entendimento de como criar e tratar seus bichos de estimação. “De acordo com minhas experiências, os animais que vivem em um grupo específico, independentemente da raça ou do tamanho, desenvolvem uma linguagem — seja física ou sonora — entre eles. Por isso, certas palavras de comando que eu uso são facilmente absorvidas por eles, mas não por outros cães fora do nosso convívio”, detalha.

Ele se lembra de quando uma de suas cadelas morreu após uma cirurgia. “Eu fiquei arrasado e meus cachorros sentiram isso, perceberam meu desespero. Por isso, chegavam perto de mim de maneira carinhosa e deitavam ao meu lado, como se fosse uma forma de dividir a dor da perda”, lembra. O sócio dele na criação dos animais, Johann Veras Gerkman, 28 anos, respalda o comentário: “Os bichos nos respeitam e percebem quando estamos mais nervosos, por exemplo. Se eles veem que o Paulo está ocupado ou ansioso, vêm atrás de mim, para não incomodá-lo”. Gerkman compara que, às vezes, os cachorros são mais compreensivos do que os seres humanos.

Proximidade

A orientadora educacional Ítala Carneiro Lemos, 27 anos, convive há quase três anos com a cadela Maria Quitéria, apelidada de Kiki. “Desde bebezinha ela aceita bem os meus comandos. No começo, tivemos problemas da adaptação, mas hoje em dia tudo é tranquilo. Só de eu olhar para ela, a Kiki já entende o que é para fazer, se é para me seguir ou não.” Ela conta que realmente sua cadela consegue notar, pelos gestos, olhares e comportamento, quando Ítala quer ficar mais sozinha, quando precisa de carinho ou quando está disposta a brincar. “Se estou mais triste, ela se aproxima e fica me lambendo. Mas se percebe que estou irritada, se afasta e fica quietinha”, relata. De acordo com a orientadora educacional, o convívio de ambas é tão estreito que a cadela consegue compreender mais as necessidades da dona do que alguns colegas menos próximos, por exemplo.

“O que devemos sempre lembrar é que ela é um animal e, portanto, tem suas limitações. Embora tenha essa comparação da pesquisa com crianças pequenas, já que elas ainda não falam e o contato é mais visual, não dá para achar que cachorro é gente”, pondera. Ítala determina que dar carinho para os bichos é tão importante quanto fornecer-lhes água e alimento. “Às vezes, o ser humano cobra amor do cachorrinho, mas não lhe dá amor e cuidado de volta”, lamenta, acrescentando que qualquer ser vivo deve ser bem tratado. Chianca concorda com ela: “O grande erro das pessoas é humanizar demais seus animais, querer que eles ajam como seres humanos. É preciso lembrar que eles têm instintos e necessidades próprias, pois só levando isso em conta a convivência será positiva”.

De acordo com o veterinário Bruno Alvarenga, do Hospital de Clínicas Veterinárias, é interessante que um grupo de pesquisadores comprove por métodos científicos a interação direta entre bichos de estimação e seus donos. “Percebo que os cães têm uma capacidade cognitivo-social considerável e me parece plausível equivalê-la à de uma criança”, salienta. “Porém, são muitas as raças e cada uma tem um nível de atenção e obediência diferente”, atenta o veterinário. “Eu costumo avisar meus clientes sobre seus cães: ‘Ele é como uma criança, precisa de orientação para ser um adulto educado’”, conta Alvarenga. Ele espera que essa pesquisa ajude a fazer com que os “céticos que ainda veem o cachorro como um objeto decorativo mudem o tratamento com seus companheiros”.