Estudo

07/11/2011 – Atualizado em 31/10/2022 – 9:04am

Estudo mineiro com toxina da armadeira mostra que além da dor, substância pode ajudar na recuperação de isquemias cerebrais e oculares. Teste em humanos pode ser em cinco anos
Uma descoberta importante para minimizar a dor de pacientes com câncer e Aids, por exemplo. Uma forma de equilibrar o coração com arritmia. Uma chance de proteger e recuperar as células atingidas por isquemias cerebral e na retina. Tudo isso vindo das toxinas da aranha-armadeira, animal peçonhento que não faz teia e se encontra facilmente nas bananeiras, buracos na terra e debaixo de folhas secas ou entulhos de obra. Em estágio avançado, as pesquisas mineiras sobre o tema já foram patenteadas, receberam apoio de instituições renomadas do país e em aproximadamente cinco ou seis anos, os testes passarão a ser feitos em humanos.
O trabalho para desvendar o veneno da Phoneutria nigriventer começa nos laboratórios da Fundação Ezequiel Dias (Funed), em Belo Horizonte. Aranhas de campo e algumas criadas em cativeiro são induzidas a liberar o veneno, usado especificamente para imobilizar suas presas ou para sua defesa em situações de risco. A cada dois meses, os técnicos anestesiam o aracnídeo com gelo seco e dão choques nas quelíceras das aranhas – articulações localizadas do lado da boca, onde ficam as garras, que servem para apanhar as presas e injetar o veneno – e conseguem extrair 10 microlitros do composto.
Depois disso, a farmacêutica com doutorado em bioquímica Marta do Nascimento Cordeiro, que coordena o estudo dessa composição, separa cada uma das substâncias até torná-las puras. O processo passa pelo congelamento do veneno para remoção da parte líquida (liofilização), desidratação semelhante àquela usada para preservar alimentos perecíveis. Assim, a parte sólida é examinada pelas máquinas, que fazem a leitura e o registro dos pelo menos 80 componentes do veneno. Para identificar a pureza, retira-se também o sal dessas substâncias.
A pesquisa teve início em 1963, mas, à época, não era possível purificar as moléculas na quantidade necessária. Com equipamentos mais modernos, os estudos avançaram. "Nosso objetivo era saber qual componente evidenciava cada sintoma em casos de picada", explica a pesquisadora, listando os efeitos da picada observados em animais e humanos: dor pungente e imediata que irradia; cãibras dolorosas; tremores musculares; convulsões; paralisia; sudorese; priaprismo; perturbações cardíacas; e distúrbio visual.
"Esta é uma aranha errante, que precisa caçar porque não faz teia. Como todo animal peçonhento, a aranha só ataca para se alimentar ou ao se sentir ameaçada, para sua própria defesa. Houve um caso recente de um adulto picado em Campinas, em 2008. Ele foi atingido na nuca, uma área sensível, mas sobreviveu. Crianças e idosos são mais frágeis e, nesse caso, o risco é maior", explica Marta.
RESULTADOS A primeira fase é essencial para as análises biológicas feitas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Ensino e Pesquisa da Santa Casa, colaboradores da pesquisa. Os testes em casos de dor mostraram que uma das toxinas da aranha é mais efetiva que a morfina em doses cinco vezes menores. Segundo o coordenador da pesquisa de Toxinologia, Marcus Vinícius Gomez, os efeitos do veneno da aranha duram 24 horas, enquanto o efeito da morfina desaparece em apenas quatro horas. Outra vantagem é que as toxinas não desenvolvem tolerância, como a morfina.
Os estudos sobre a Phoneutria nigriventer foram feitos paralelamente a um trabalho desenvolvido nos Estados Unidos e na Europa com o caramujo marinho e chegaram a conclusões muito parecidas. Desde 2006, as toxinas do caramujo já são usadas em medicamentos contra dor, cujo produto comercial chama-se Prialt, que chegou ao mercado quatro anos depois dos testes em humanos. De acordo com Marcus Vinícius, as toxinas da aranha são ainda mais potentes que as do caramujo marinho e, principalmente, apresentam menos efeitos adversos.
"Percebemos que elas pertenciam à mesma estrutura química (proteínas) e a toxina da aranha repetia os efeitos do caramujo. Então, resolvemos testá-la para dor também e descobrimos que ela ainda é mais potente, mais capaz de reverter a dor, com menos efeitos adversos. Outro detalhe é que as toxinas não causam alergia e, por isso, podem ser testadas em humanos. Não tínhamos ilusões para aplicações terapêuticas, só queríamos saber como elas agiam nos canais de cálcio (canais iônicos encontrados em células excitáveis) ", conta o professor.
Três toxinas da aranha estão em estudo. Uma delas atua contra dores do câncer e da Aids, dor cirúrgica, dor química, contrações abdominais e da dor relacionada à remoção do nervo ciático. As outras duas têm efeitos contra as isquemias cerebral e na retina, e arritmia. A dificuldade, segundo o pesquisador, é a obtenção e produção de grandes quantidades do veneno. Por isso, as moléculas estão sendo recombinadas (clonadas). Uma empresa em Campinas, São Paulo, já trabalha na formação dessas mesmas cadeias em laboratório. Para o especialista, em quatro ou cinco anos já será possível pedir licença para usar as toxinas contra a dor nos testes em humanos.
ARRITMIA As experiências em ratos e camundongos mostraram que a toxina age recuperando o equilíbrio na batida do coração. Avaliado in vitro, o coração fica isolado numa solução nutridora e sua artéria é amarrada com um pequeno fio. Ao ser solta, o coração trabalha em desequilíbrio, mas a ingestão da toxina aumenta a liberação de acetilcolina, substância que atua como neurotransmissor e falta quando há arritmia. Até o fim do ano, os testes serão feitos em animais vivos. Nos casos de isquemia, as toxinas protegem as células, o que foi comprovado em testes in vitro e já nos animais vivos.
"Esta é a que tem mais potencialidade por causa disso. Conseguimos comprovar que a toxina era capaz de proteger a região mais afetada no choque isquêmico até duas horas depois. Levamos para a retina e, neste caso, o tempo é de 90 minutos. Só que ela consegue recuperar as células que já estavam morrendo. Simulamos uma isquemia cerebral com o hipocampo in vitro, sem oxigênio e glicose, e depois nos ratos. Precisávamos clonar essas substâncias em grande quantidade, mantendo sua eficiência, e isso já está sendo feito", diz ele. E comemora: "Já publicamos esse trabalho em revistas especializadas internacionais e os cientistas, em suas análises, chamam de ‘uso fascinante de toxinas com provável aplicação clínica’". As pesquisas sobre as toxinas que atuam contra a dor estão patenteadas nos Estados Unidos, Canadá, Brasil e Europa. Já as usadas para o controle das isquemias e taquicardia estão patenteadas no Brasil.